As
roupas estão enfileiradinhas no armário fedorento. Eu trouxe minhas melhores
roupas mas olho pra elas e vejo camisetas e calças e vestidos camuflados. Tenho
27 anos mas estou com dezoito, me alistando ao exército. Estou em um
apartamento na rua Dias Ferreira, no Leblon. É coisa chique morar aqui, me
avisam. Por incrível que pareça, foi o aluguel mais barato que arrumei,
considerando que é de uma tia de uma amiga e que está tudo velho, rangendo e
com um cheiro horroroso que não consigo decifrar. Algo entre o mofado o azedo e
o morto.A privada é marrom. Por que uma privada seria marrom? Quanto tempo eu
vou ter que cagar nessa privada marrom? Se eu achar que estou morrendo, qual o
melhor hospital do Rio de Janeiro? Pergunto isso para um amigo carioca antes de
sair de São Paulo. Ele não entende direito a pergunta, mas porque está ocupado
diz logo que tem um chamado “Copa d’or”. Tem laboratório Fleury no Rio? Meu
amigo desliga.
Tenho
saudades da minha casa. Eu morava em um apartamento pequeno e alugado em São Paulo.
A oito quadras da minha mãe. Eu dividia a empregada com minha mãe e, toda terça
e quinta, a empregada me trazia algumas comidinhas tipo quibe de forno ou uma
quiche de alho poró. Eu visitava minha mãe toda segunda e domingo, dias em que
eu almoçava comidinhas como salada de quinua com frango desfiado ou sopa com
bastante caldo de carne- para os dias em que fico enjoada mas não posso ficar
fraca. Eu me sentia uma super fodona vivendo a vida loucamente no meu pequeno
apartamento, comprando minhas próprias camisinhas e meus próprios tomates, mas
eu vivia numa porra de uma bolha.Minha mãe, que veio comigo para o Rio me
ajudar com as malas e com a arrumação, me diz “que delícia ter a sua idade e
poder morar aqui e poder viver todas essas coisas”. Eu só consigo pensar que,
pelos próximos infinitos meses, acordarei cinco da manhã pra fazer um milhão de
flexões e me preparar para uma guerra sanguinolenta. Tchau família, vou servir
ao país. Lavo a mão.Amanhã começo uma oficina de roteiro na Globo. Na sequencia
da oficina, eles vão me testar em um seriado de humor. A oficina mais o seriado
devem dar uns dez meses morando no apartamento com a privada marrom. Talvez
nove meses. Talvez um ano. Talvez na sequência eles me testem em outro seriado.
Ou em um programa de auditório, o que eu não sei se gostaria. Ou em uma novela,
o que eu acho que gostaria bastante. Talvez dure mais de dois anos. Talvez eu
morra nesse apartamento, mais precisamente sentada nessa privada marrom. Mas eu
também posso ir embora amanhã, se eu quiser. Ou agora.Que desculpas eu poderia
dar para ir embora agora? “Alô, oi, então, minha mãe está morrendo, não posso
viver longe dela, ok?. Penso isso quando vejo minha mãe cantarolar e folhear
uma revista. Ela me olha e sorri “vai, filha, toma banho”.
Quem
está morrendo sou eu. Está sol, eu vou escrever histórias pra televisão e
emocionar milhões de brasileiros, eu vou morar a poucas quadras da praia. Eu
deveria estar feliz. Eu estou nua, toda cortada, sangrando, e o leão me espera
lá embaixo pra devorar meu coração. Ele vai chacoalhar suas madeixas douradas e
esguichar meu sangue pelos ares. Lavo minhas mãos.Eu trabalhei os últimos sete
anos em agências de publicidade. A cada seis meses eu pedia demissão e ia pra
outra e pra outra e pra outra. Assim que eu pegava todos os garotos e homens e
tios e estagiários e donos e sócios e criativos e atendimentos bonitos com os
quais eu poderia ter algum envolvimento, automaticamente o lugar ficava
insuportável pra mim. Foi quando eu percebi que vender sabão não era exatamente
divertido. Passar o rodo nos gatinhos fodidos de cabeça sim, era bem divertido.
Tá, em algum momento eu achei divertido vender sabão. Eu virei noites e noites
pra encontrar a forma mais profunda e engraçada e inteligente de vender sabão.
Mas ninguém com um pouco de decência espiritual vê graça nisso muito
tempo.Estou tomando banho agora, pra me arrumar, pra ir para o primeiro dia da
oficina de roteiro de humor da Globo. Serei testada e isso sempre me
enlouquece. Eu nasci achando que ta óbvio o que eu sou então qualquer teste
sempre me soa como algo estúpido. Não tá estampado na minha cara que sou
misteriosa, profunda, louca, genial, gente finíssima e hilária? Não. Ok.Preciso
ser engraçadíssima nessa oficina. Preciso ser dez vezes mais engraçada do que
eu fui em todos os 683 mil recreios de toda a minha infância e adolescência.
Choro tomando banho. Começa com um choro pequeno, só algumas lágrimas tímidas.
As lágrimas vão ficando gordas e gordas e gordas. Choro agora desesperadamente
e dou pequenos murros no meu peito. Saio do banho antes de terminar o banho,
porque estou passando mal de cólica intestinal. Deve ser colite nervosa. Não
sei o que quer dizer isso, mas minha avó tinha então eu devo ter. Deixo a
privada cheia de espuma de banho e ensopo o chão do banheiro. Não gosto desse
banheiro de rodoviária de Cuiabá. Vou ter que morar nele por quanto tempo? Dez
meses? Um ano? Que desculpa eu posso dar para ir embora hoje? Quero voltar pra
minha casa. Quero voltar pra São Paulo. Minha cidade tem nome de santo. Ela é
boazinha. Vou comprar enfeites e revistas e coisas com cheiro bom e almofadas
coloridas. Toda pessoa sofrendo compra almofadas coloridas. Volto pro banho.
Estou atrasada.Seu sonho era escrever! Então agora toma esse banho, come alguma
coisa, enfia uma roupa e vai. Com nove anos eu escrevi em meu diário “não vejo
a hora de sentir dor”. Me assustei quando li isso, já adulta, mas lembrei
exatamente o que eu estava sentindo naquele dia que escrevi isso. Eu sentia uma
angustia profunda mas eu tinha uma vida ótima de criança cheia de brinquedos e
amores e comidas. Então por que aquela angústia desgraçada? Eu queria logo ter
um problema bem grande, algum motivo pra sofrer. Pra justificar meu sofrimento
eu queria ter motivo pra sofrer. Meu avô, quando dava umas seis da tarde,
ligava pra minha mãe no trabalho e avisava “a menina vai começar com as faltas
de ar de novo, já falei que pode ser asma”. Dai minha avó se metia, e também
ligava pra minha mãe no trabalho “é colite nervosa, são gases”. Dai o cardiologista
achava que era o meu prolapso da válvula mitral, mas que isso não era nada. O
gastro achava que era bactéria. E o alergologista achava que era alergia à
produto de limpeza, por conta de minha rinite, mas que também não era nada.
Minha mãe mandava meu avô tirar minha febre. Meu pai perguntava se eu tava
vomitando. Eu nem tinha febre e nem vomitava. Mas por dentro eu tinha febre e
vomitava e tinha asma e tinha bactérias e estava alérgica e estava tendo uma
parada cardíaca. E lá fora estava sol e dava para eu ser feliz.Coloco um
vestido azul cheio de babados. Não uso muito azul e tenho horror a babados.
Comprei essa merda de vestido porque o Leblon é cheio de boutiques de novas
estilistas cariocas e esse vestido estava na vitrine de umas dessas boutiques
de novas estilistas cariocas. Eu quis pertencer. Vai que por osmose me torno
alguma coisa menos discrepante nessa cidade. Odeio esse vestido. Ele é a
privada marrom em forma de vestido de menina fofa da Zona Sul. Coloco meu
Iphone na caixa de som porque preciso ouvir Radiohead. Ele é caolho e diz
frases tão dolorosamente bonitas e me acalma. Lavo a mão. Preciso comer alguma
coisa porque estou com hipoglicemia.Enquanto eu tomava banho, minha mãe fez uma
massa rapidinha na cozinha. A pia da minha nova cozinha caindo aos pedaços está
cheia de formigas e minha mãe me fala o nome de um negócio bom pra isso. Não
guardo o nome porque isso é problema da empregada. Que empregada? A Maria ficou
em São Paulo. E você, morando em outra cidade, fazendo um curso, sem trabalhar,
não tem mais dinheiro nenhum. Você é a sua nova empregada agora. Então qual é o
nome do remédio que mata formigas, mãe? O nome é detergente, minha mãe fala
querendo chorar. Minha mãe acaba de perceber que eu tenho quatro anos de idade
e que talvez não seja muito seguro me deixar abraçar o mundo. Preciso comer
porque estou passando mal. Mas macarrão vira açúcar muito rápido e isso não é
bom. Quando se é hipoglicêmica e se está precisando de açúcar não se pode
ingerir açúcar nem muito rápido e nem em muita quantidade. Ao mesmo tempo, se
eu comer pouco ou devagar, talvez eu passe mal daqui uma hora. Lá fora todas as
pessoas do universo não complicam suas vidas e caminham decididas e fortes ao
sol. Eu lavo as mãos.Termino de comer e estou passando muito mal. Estou
passando muito mal. Estou passando muito mal. Meus pensamentos entram no
looping da crise de ansiedade e repetem em mantra as frases que me levam da
realidade. Minha nuca travou daquele jeito que olhar pro lado é um sacrifício.
Quando não consigo olhar pro lado sempre penso o quão egocêntrico é sofrer.
Penso, penso, penso e penso. E se eu não for engraçada? E se eu chegar lá e
vomitar em cima da mesa? E se eu tiver uma caganeira na privada do Projac e só
no dia seguinte eles me encontrarem morta caída no chão do banheiro? Morta sem
as calças e cagada e vomitada. Não seria engraçado. E morta eu definitivamente
não conseguiria a vaga de roteirista ao final da oficina.Minha mãe se despede e
chama um taxi. Daqui a dez minutos, quando o taxi chegar e levar minha mãe pra
São Paulo, eu serei oficialmente adulta e sozinha e fodida e sangrando e
chamando os leões. Eu não tenho nenhum amigo no Rio. Eu não tenho nenhum
parente no Rio. Eu não tenho nada no Rio, além de mim. E mim, coitada, é bem
maluca. Minha mãe diz uma daquelas frases que não querem dizer nada, típicas de
quem está nervosa, do tipo “vai lá e mostra pra eles” ou “vai lá e arrasa!” ou
“um dia vai ter valido a pena”. Eu abraço minha mãe. Ela vai embora. Eu tiro o
vestido azul. Eu lavo as mãos. Eu dou tchau da janela pra minha mãe.Em menos de
um mês eu mudei de profissão, emprego e cidade. Eu sinto o maior medo e a maior
tristeza que já senti em toda a minha vida. Mas agora eu vou lá, mostrar que
sou super engraçada.
Lindo.
ResponderExcluirTati Bernardi sempre ♥
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